São Paulo, domingo, 15 de abril
de 2012
Caetano Veloso e os elegantes
uspianos
"Por que Schwarz ou Chaui
nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte?"
PAULO WERNECK
Quinze anos depois de publicar
suas memórias da Tropicália em "Verdade Tropical", um antigo
antagonista bate à porta de Caetano: o crítico marxista Roberto Schwarz, no
ensaio "Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo". O texto,
inédito, foi incluído no recém-lançado "Lucrécia versus Martinha"
(veja crítica na pág. 6), que a Companhia das Letras lhe enviou em primeira
mão.
O ensaio "reconta"
criticamente a narrativa, transformando-a na história da conversão de um
"menino portador de inquietação" de província a um "novo
Caetano", que "festejou a derrocada da esquerda como um momento de
libertação". Ao mesmo tempo, põe nas alturas a prosa do baiano.
Schwarz critica seu "traço
de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo", as
"ambivalências" do tropicalismo, o "patriotismo fantasioso"
e "supersticioso" do compositor, sua "defesa do mercado",
seu "confusionismo", sua "cumplicidade" com os agentes que
o prenderam - e por aí vai.
Em suma, o ensaísta afirma que
"Verdade Tropical" "compartilha os pontos de vista e o discurso
dos vencedores da ditadura". Em outro momento, recrimina o "regressivo"
"amor aos homens da ditadura" que Caetano e Gil expressaram.
"Esse parágrafo de Schwarz é
cruel e tolo", rebate Caetano. "A prisão me pôs mais profundamente em
inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil".
Ele reafirma sua "teimosia em permanecer no campo da esquerda", mas
também diz ter deixado de temer, em 1967, "palavras como 'conservador' ou
'de direita', como se fossem xingamentos que ostracizam", diz. Direita e
esquerda, nos anos da ditadura e hoje, são o foco desta entrevista, concedida
por e-mail.
Ele aponta o silêncio de Schwarz
e de outros expoentes do pensamento de esquerda, como a filósofa Marilena
Chaui, a respeito do totalitarismo em regimes comunistas como a China e a
Coreia do Norte: sobre isso, diz ele, "nossos elegantes uspianos nada
dizem".
"Verdade Tropical"
volta à pauta não somente pelas mãos de Schwarz, mas também pela edição em
separado de um de seus capítulos, "Antropofagia", na coleção Grandes
Ideias [Penguin Companhia, 72 págs., R$ 10,90].
Em agosto, o compositor completa
70 anos. A gravadora Universal abre as comemorações neste mês, com o
relançamento, em CD e LP, de seu cultuado "Transa". Quarentão, o
álbum foi remasterizado pelo produtor original, Steve Rooke. Em maio, sai por
aqui "Live at Carnegie Hall With David Byrne", já lançado nos EUA. E,
em agosto, um tributo com artistas brasileiros e estrangeiros.
Depois de produzir
"Recanto", disco de Gal Costa com canções suas, Caetano volta-se para
a composição de um novo CD a ser gravado com a banda Cê, que o acompanhou em
"Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009).
Folha - Roberto Schwarz faz um
misto de valorização literária e severa crítica ideológica de "Verdade
Tropical", 15 anos depois da publicação. O que retém em sua leitura?
Caetano Veloso - É envaidecedor
que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro.
Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica. No entanto, retenho
a observação de que o argumento desenvolvido a partir da cena central de
"Terra em Transe" seja, no livro, um tanto mal concebido.
Por que Schwarz só publica o
ensaio 15 anos depois do seu livro?
Não sei. Talvez ele o tenha lido
com grande atraso (não 15 anos de atraso, é claro) e demorado muito para
decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em
metabolizar o que leu.
Por que o livro renasce agora,
com a edição de bolso de um de seus capítulos e a crítica de Schwarz?
Não sei.
Como foi a recepção do livro nos
países em que foi publicado?
Foi publicado, em boas traduções,
na Itália e na Espanha (e países de língua espanhola). A tradução francesa é
horrível. A grega eu não sei ler. De qualquer modo, todas as traduções partem
da edição americana (os direitos fora do Brasil e de Portugal são da Knopf),
que deformou muito a estrutura do original. Todos os elogios literários que o
livro mereceu de Roberto não seriam justificados para quem só lesse as
traduções.
Me lembro de que a "New York
Times Book Review" deu resenha favorável. Ouço comentários positivos de
amigos argentinos, espanhóis e italianos. Também de alguns gregos. Na França
parece que, além da tradicional mania francesa de traduzir como quem corrige o
original, deram o longo texto a pessoas totalmente desqualificadas
intelectualmente: já que se trata de um livro de cantor pop, por que pedir a
alguém que saiba ler e escrever para traduzir?
Schwarz vê a relação dos
tropicalistas com a esquerda como uma "comédia de desencontros", na
qual haveria mais afinidades do que divergências. Seu livro descreve longamente
as divergências, e Schwarz agora as reitera. Ainda é possível falar em
afinidades?
Claro que há e sempre houve
afinidades. Gil e eu, além de Tom Zé e Rogério Duprat, sempre fomos "de
esquerda". Nossos amigos foram sempre majoritariamente de esquerda. Na
altura do tropicalismo deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos,
que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O
maior inimigo era esse automatismo.
A cena de "Terra em
Transe" é positiva porque expõe a quebra do automatismo ideológico a que
artistas e intelectuais se viam presos. Quando o protagonista fala, o tom
blasfemo revela tratar-se de um momento liberador. Claro que, uma vez olhando
as coisas mais livremente, os males da esquerda apareceriam.
O ensaio atribui a você uma
"generalização para a esquerda do nacionalismo superficial dos estudantes
que o vaiavam" e a visão da "esquerda como obstáculo à
inteligência". Desde então, que renovação você vê na esquerda do ponto de
vista cultural?
Toda cartilha ideológica, pode
ser - e frequentemente é- obstáculo à inteligência. Eu tinha amigos na extrema
esquerda que gostavam do que eu fazia e nada opunham ao tropicalismo.
Já contei em minha coluna no
"Globo" como quase dei apoio logístico ao grupo de Marighella,
através de minha amiga Lurdinha, uma guerrilheira que foi torturada e a quem [o
delegado Sérgio Paranhos] Fleury se refere, numa entrevista, como a pessoa mais
corajosa que ele conheceu.
Aliás, Hélio Oiticica, Glauber e
Zé Celso eram de esquerda, além de Rubens Gerchman, Zé Agrippino e Rogério
Duarte. O "desbunde" foi sobretudo um evento interno ao mundo das
esquerdas. Hoje em dia, quando Delfim é defensor de Lula e Dilma e se opõe a
FH, gosto da revista "Fevereiro", de Ruy Fausto, e detesto blogs como
o de Paulo Henrique Amorim.
Sempre me pergunto por que
Roberto Schwarz ou Marilena Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa
na Coreia do Norte (não vale dizer que a "grande imprensa já diz").
Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas
cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém
na esquerda reclama de nada disso?
Os esforços intelectuais de
[Theodor] Adorno para igualar a vida americana ao Terceiro Reich e à União
Soviética só servem para provar repetidas vezes que as liberdades nas
democracias liberais são suspeitas: a ostensiva falta de liberdade em países
comunistas nunca é combatida, nem eloquentemente, nem cedo.
Quando eu era moço, intelectuais
de esquerda dizerem-se anti-stalinistas representava um piso mínimo de
elegância: quase nunca passava de uma declaração para se poder continuar sendo
comunista. Não havia (como Tony Judt mostrou que não havia na França) um
esforço crítico, por parte de intelectuais de esquerda, de se opor aos estados
policiais.
É interessante notar que Zizek
elogia o imperialismo chinês no Tibete e desculpa as paradas fascistas da
Coreia do Norte. Nossos elegantes uspianos nada dizem.
Qual foi a novidade em termos de
crítica ao tropicalismo no Brasil e no exterior?
Não leio quase nada sobre
tropicalismo. Às vezes esse movimento é citado em publicações sobre música
popular, às vezes em artigos acadêmicos (de estudos sobre América Latina ou
língua portuguesa). Nada me impressiona muito.
Augusto de Campos e Ferreira
Gullar polemizaram em torno de acontecimentos dos anos 1950 e 60, o país
discute a Comissão da Verdade, torturadores têm sofrido "esculachos"
na porta de casa. A conta dos anos 1960 e 70 não fecha?
Que conta fecha? Mas vamos
andando. O ser humano é um desequilibrador. Pessoalmente, sou pela Comissão da
Verdade. Há um trecho crucial em "Verdade Tropical", que Schwarz
sintomaticamente ignora, em que conto o quanto aprendi sobre a verdade da
sociedade brasileira ao ouvir, na cadeia, urros de dor de torturados, os quais
não eram nossos companheiros de prisão política. Havia quem dissesse que se
tratava de presos políticos vindos de outros quartéis. Mas chegou-se à
conclusão de que eram presos comuns, ladrões da Zona Norte, bandidos.
Pois bem, antes da ditadura,
durante e depois, esses maus tratos vêm se dando nas delegacias e prisões civis
e militares. Se não denunciarmos (e mesmo punirmos) os torturadores que
trabalhavam para o Estado, não teremos a saúde social mínima necessária para
começar a acabar com isso.
Há um paralelo entre o público
dos festivais e os comentaristas de internet e blogueiros de hoje?
Deve haver. Mas não interessa.
O que pensa da Comissão da
Verdade e da Lei da Anistia?
Senti que o modelo espanhol da
Anistia serviria para o Brasil. Hoje sou totalmente pela Comissão da Verdade e
não acho que torturadores devam ser perdoados. Os guerrilheiros foram punidos
(inclusive com tortura e morte). É enganoso equiparar os dois tipos de crime.
Você é retratado como um
memorialista "comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o
capitalismo é inquestionável". Como responde à acusação de
"conservadorismo" político?
Deixei de temer palavras como
"conservador" ou "de direita", como se fossem xingamentos
que ostracizam, em 1967. Minha teimosia em permanecer no campo da esquerda vem
de minha crença na possibilidade de mudar para melhor o jeito de a gente viver
sobre a Terra. Não descarto sequer a eventualidade de alguma violência. Mas
estou certo de que o que se chama de esquerda também atrapalha muito.
O mito do Brasil e de sua
oportunidade de originalidade me põe numa situação em que posso sonhar mais
alto, pondo os horrores das revoluções e seus desdobramentos sob crítica. Por
essa razão me atraem mais as sugestões de Mangabeira Unger do que as repetições
da esquerda uspiana.
Ele abre espaço para a
originalidade do Brasil. Para mim isso é fatal: somos originais, seremos
originais ou desapareceremos. O capitalismo não é inquestionável: que a
gasolina americana tivesse sido enriquecida com chumbo porque isso a fazia mais
rentável, e que o empresário que usou essa vantagem tenha mantido em segredo a
descoberta de que o chumbo era prejudicial à saúde pública para não ver cair o lucro;
e que, depois de essa descoberta ter-se tornado pública, a gasolina americana
tenha reduzido gradativamente até zero seu teor de chumbo, mas a brasileira
não, por razões de lucro (com todas as implicações de acumulação de capital e
de reafirmação de poderes imperialistas), é algo que expõe a que graus de
irracionalidade e de desumanidade pode chegar uma organização social que se
submeta à exclusiva força da grana. Sou contra.
Mas não quero que os que lutam
contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da
originalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta
e poderia, de qualquer modo, orientar os serviços que alguém queira prestar à
Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos
movimentos revolucionários da esquerda convencional. Estes têm levado à
autocracia e a Estados policiais. Sou contra.
Além disso, quando se diz
"capitalismo" o que é mesmo que se está querendo dizer? O capítulo
sobre o conceito no livro de Mangabeira é instigante. E Lacan disse uma vez que
"o inconsciente é capitalista".
Schwarz critica o "amor aos
homens da ditadura" expresso por Gilberto Gil ao tomar ayahuasca e comenta
os seus elogios à letra de "Aquele Abraço": "A lição aplicada
pelos militares havia surtido efeito". Como vê essa avaliação severa?
Esse parágrafo de Schwarz é cruel
e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos
militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que
passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de
gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz.
Gosto mais do esclarecimento do
que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio
dessa escolha da palavra "esclarecimento" em lugar de
"Iluminismo".)
A lição aplicada pelos militares
surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos
da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável
em nossa sociedade.
Para o ensaísta, há uma
discrepância entre as visões de "Verdade Tropical" sobre o Brasil
pré-64: ora é descrito como um "ascenso socializante", com sua
experiência em Santo Amaro e em Salvador, ora como "um período incubador
de intolerância e ameaça à liberdade". Você enxerga essa discrepância?
Eu poderia ter sido um garoto de
esquerda, sem desconfianças a respeito sequer do stalinismo. Mas não fui. Me
atraiu o livro de Luís Carlos Maciel sobre Beckett, Kafka e Ionesco: a esquerda
que eu conhecia era lukacsiana e ninguém falava em Adorno em 1963 em Salvador
(embora se falasse muito em Gramsci, o que era pioneiro).
Poderia ter sido um garoto assim
e, depois, descoberto que nos países comunistas (não só na URSS e seus
satélites, mas na China de Mao, em Cuba, na Coreia do Norte) o Estado
desrespeitava oficialmente os mais básicos direitos humanos -e ter me revoltado
contra o projeto comunista.
Mas eu era um garoto desconfiado
da "ditadura do proletariado", além de ser um sujeito pacato da baixa
classe média que sentia natural horror pelo aspecto violento das revoluções.
Descobrir que a experiência do
"socialismo real" era de fazer temer os esboços de implantação do
comunismo entre nós não foi uma surpresa assustadora. Foi um gradual
reconhecimento da complexidade das coisas. Isso aparece em meu livro com todas
as idas e vindas por que minha mente passou. Com as nuances e sem evitar as
questões que não ficaram resolvidas dentro de mim.
Não é um livro de propaganda
ideológica. É um relato em que as reflexões relembradas -ou as sugeridas pela
lembrança- acompanham cada passo.
Você se reconhece na descrição
que o crítico faz de seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito
mas avesso ao antagonismo"?
Gosto de atrito. É a base do
sexo. Mas não rejeito o antagonismo.
Sou nitidamente contra o Brasil
ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos
militares reformados. Sou nitidamente contra Lula ter apoiado a eleição de
Ahmadinejad antes de o próprio Irã decidir se as eleições tinham sido fraudadas
ou não.
São Paulo, domingo, 22 de abril
de 2012
Caetano fugiu do tema, diz
Schwarz
FLÁVIO MOURA
"ELE MUDOU DE assunto.
Parece piada." Para o crítico Roberto Schwarz, a entrevista de Caetano
Veloso publicada na "Ilustríssima" de 15/4 não entra no mérito dos
argumentos de seu ensaio sobre "Verdade Tropical" (1997), volume de
memórias do compositor. O texto, inédito, faz parte da coletânea recém-lançada
"Martinha versus Lucrécia" [Companhia das Letras, 320 págs., R$ 44].
Caetano criticou Schwarz e
Marilena Chaui: "Por que nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na
Coreia do Norte?". Schwarz rebate: "O interesse pela Coreia do Norte
é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro."
Certa vez, num evento, perguntaram
a Schwarz quando sairia o texto sobre Caetano. Ele disse: "É demorado,
pois é preciso ver muitas coisas de muitos lados diferentes". O ensaio
cumpre a promessa.
Schwarz é generoso com a obra do
compositor: brilhantismo, inteligência, complexidade dialética, sensibilidade -
não faltam conotações positivas à condução do argumento. É raro que uma obra
literária recente receba escrutínio tão minucioso. Nesse sentido, não está em
discussão apenas a vitalidade de "Verdade Tropical", mas da crítica
literária produzida hoje.
O livro também traz dois textos
que avançam na interpretação sobre Machado de Assis, tema que domina sua obra.
Num deles, cujo argumento se desenrola a partir de uma crônica, "O Punhal
de Martinha", o ensaísta reivindica que a universalidade de Machado seja
buscada na matéria local brasileira, e não em sua superação, como quer parte da
crítica estrangeira.
Leia a íntegra da entrevista,
concedida por e-mail, em que Schwarz comenta a resposta de Caetano a seu ensaio
e fala de outros textos do livro, como a resposta ao crítico Alfredo Bosi sobre
as "Ideias Fora do Lugar", célebre ensaio de 1973.
Folha - Como leu a entrevista de
Caetano?
Roberto Schwarz - Ele mudou de
assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano
falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda
obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada.
Ao contrário do que a entrevista
faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito
menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei
acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de
modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias.
Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para
que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É
o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.
Como crítico literário, sou
sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso,
fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais
como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de
complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder "executando um
gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se
mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar", "Verdade
Tropical", pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha.
É ler para crer. À maneira dos
romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as "Memórias
Póstumas de Brás Cubas"- "Verdade Tropical" deve muito de seu
interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu
narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade
histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o
quase romance não deixa de ser um depoimento.
O sr. vê fundamento na cobrança
de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?
É claro que a reflexão informada
e crítica sobre as experiências do "socialismo real" é indispensável
à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente
menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo
estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é
sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.
Por que o ensaio vem à tona 15
anos depois do livro de Caetano?
Logo que o livro saiu, vi que era
notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos
para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.
Em que medida o texto aprofunda
os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio "Cultura e
Política: 1964-1969"?
"Cultura e Política"
foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da
Tropicália. "Verdade Tropical", de Caetano, que reapresenta aqueles
tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já "Um
Percurso de Nosso Tempo", redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do
capitalismo. São três momentos distintos.
A Tropicália do fim dos anos 60
debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava
conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de "tradição,
família e propriedade". A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem
achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao
atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a
incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente.
Era uma visão crítica, bastante
desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia
com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em
1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e
deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão
"nossos". Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante.
No ensaio procurei acompanhar e
discutir estes deslocamentos.
Qual a diferença entre fazer
crítica dialética hoje e nos anos 1960-70?
A crise atual -de que não estamos
tomando muito conhecimento no Brasil- veio precedida pela derrota das
tentativas práticas bem como das ideias da esquerda. Assim, não faltam
contradições agudas, mas elas parecem não apontar para lugar nenhum, ou só para
mais do mesmo.
A crítica dialética naturalmente
não pode fingir que sabe uma resposta, mas não tem por que acatar como positiva
uma realidade que é evidentemente negativa, nem tem por que renunciar à busca
de superações. As contradições estão aí, fermentando.
Não é uma novidade auspiciosa que
o Brasil possa não tomar muito conhecimento da crise atual?
Desconhecer uma crise mundial, só
porque ela não está nos tocando no momento, é sempre uma ignorância, sobretudo
para intelectuais.
No livro há uma conferência feita
em 2009 sobre "As Ideias Fora do Lugar" (1973) e uma nota de resposta
a um questionamento à tese feita por Alfredo Bosi. A que o sr. atribui essa
longevidade?
Suponho que ela se deva à
existência real do problema, que surgiu com a Independência, no século 19, e
até hoje teima em não desaparecer. A uns, as ideias dos países centrais, que
nos servem de modelo, parecem o remédio para todos os males; a outros, uma
importação postiça e "fora do lugar", que precisa ser recusada -o que
os condena a perder o contato com o pensamento do mundo contemporâneo.
Como entender a questão? Procurei
comentá-la e sobretudo esclarecer os mal-entendidos ligados a esse título de
ensaio, que teve sorte e ficou conhecido, mas causou bastante confusão.
O título do livro alude ao ensaio
sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior, no qual o sr. busca
mostrar como a "universalidade" do autor está na finura com que ele
lida com a matéria local.
É essa a questão que tentei
estudar. O reconhecimento de Machado no estrangeiro é crescente e não precisou
da reflexão sobre o Brasil para ocorrer. O escritor entrou para o cânon dos
grandes do Ocidente, onde ocupa um lugar diferenciado, sem necessitar da
referência a seu país.
Ao passo que no Brasil se formou
uma tradição crítica para a qual Machado é extraordinário justamente porque
soube inventar uma forma adequada à nossa peculiaridade histórica e social. São
explicações opostas para a grandeza de um mesmo escritor.
Como entender essa diferença?
Quais as suas implicações? São os problemas que meu ensaio explora, examinando
de mais perto e politizando a oposição clássica entre o local e o universal,
agora recolocada em termos da ordem mundial contemporânea.
O sr. não parte dos romances,
como seria de esperar, mas da crônica machadiana. Vai nisso alguma intenção
particular?
De fato, há uma crônica, "O
Punhal de Martinha", em que Machado dramatiza a questão do local e do
universal com uma graça notável, antecipando cem anos de debate crítico.
Procurei analisá-la com cuidado igual ao que merecem os grandes romances e
penso que o resultado surpreende.
Aí está, no plano modesto da
crônica, uma variante do narrador das obras-primas machadianas, dilacerado
entre a irradiação da Europa e os cafundós do Brasil, que aliás podem estar na
capital. Trata-se de um mal-estar característico, ou, também, do despeito
histórico mundial das elites progressistas de um país periférico. Por
inesperado que isso seja, o ar de família com os manifestos modernistas de
Oswald e com o clima do tropicalismo salta aos olhos.
Em entrevista de 2011, Antonio
Candido afirmou que a crítica literária acadêmica se tornou uma atividade sem
riscos, com a nova geração se dedicando apenas a autores consagrados. O sr.
concorda?
Se entendi bem, ele estaria
valorizando o momento de risco intelectual, de escolha a descoberto, sem o qual
a crítica literária se rotiniza ou reduz ao informe publicitário. Mas posso ter
entendido mal.
O seu livro é uma coletânea de
ensaios circunstanciais, mas há bastante unidade entre eles, que parecem concebidos
dentro de um mesmo propósito. É deliberado?
Agradeço a pergunta. É claro que
os ensaios têm assunto, origem e forma muito diversa. Mas há a matéria
brasileira em comum, com sua estrutura que atravessa os tempos e acaba
determinando um conjunto de questões consistentes, retomadas e variadas nos
diferentes trabalhos e sugerindo aprofundamentos que valeria a pena perseguir.
Para mim mesmo, as correspondências entre a crônica machadiana, a poesia
minimalista de Francisco Alvim, a visão pau-brasil e as montagens
tropicalistas, por exemplo, vieram como uma surpresa.
Noutro plano, os ensaios fazem
ver uma coleção de percursos intelectuais e artísticos de nosso tempo, em
contraste muitas vezes agudo, cujo conjunto convida a pensar. Aos pedaços, são
contribuições para o autoexame de uma geração.
Este texto foi muito apropriado para entendermos a função da crítica cultural, recomendo sua leitura a todos os que desejam aprofundar-se neste campo de estudos, um abraço.
ResponderExcluirFábio Bonfim - Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades.