sexta-feira, 4 de maio de 2012

Para nossa aula de hoje


São Paulo, domingo, 15 de abril de 2012

Caetano Veloso e os elegantes uspianos

"Por que Schwarz ou Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte?"

PAULO WERNECK

Quinze anos depois de publicar suas memórias da Tropicália em "Verdade Tropical", um antigo antagonista bate à porta de Caetano: o crítico marxista Roberto Schwarz, no ensaio "Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo". O texto, inédito, foi incluído no recém-lançado "Lucrécia versus Martinha" (veja crítica na pág. 6), que a Companhia das Letras lhe enviou em primeira mão.

O ensaio "reconta" criticamente a narrativa, transformando-a na história da conversão de um "menino portador de inquietação" de província a um "novo Caetano", que "festejou a derrocada da esquerda como um momento de libertação". Ao mesmo tempo, põe nas alturas a prosa do baiano.

Schwarz critica seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo", as "ambivalências" do tropicalismo, o "patriotismo fantasioso" e "supersticioso" do compositor, sua "defesa do mercado", seu "confusionismo", sua "cumplicidade" com os agentes que o prenderam - e por aí vai.
Em suma, o ensaísta afirma que "Verdade Tropical" "compartilha os pontos de vista e o discurso dos vencedores da ditadura". Em outro momento, recrimina o "regressivo" "amor aos homens da ditadura" que Caetano e Gil expressaram.

"Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo", rebate Caetano. "A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil". Ele reafirma sua "teimosia em permanecer no campo da esquerda", mas também diz ter deixado de temer, em 1967, "palavras como 'conservador' ou 'de direita', como se fossem xingamentos que ostracizam", diz. Direita e esquerda, nos anos da ditadura e hoje, são o foco desta entrevista, concedida por e-mail.

Ele aponta o silêncio de Schwarz e de outros expoentes do pensamento de esquerda, como a filósofa Marilena Chaui, a respeito do totalitarismo em regimes comunistas como a China e a Coreia do Norte: sobre isso, diz ele, "nossos elegantes uspianos nada dizem".

"Verdade Tropical" volta à pauta não somente pelas mãos de Schwarz, mas também pela edição em separado de um de seus capítulos, "Antropofagia", na coleção Grandes Ideias [Penguin Companhia, 72 págs., R$ 10,90].

Em agosto, o compositor completa 70 anos. A gravadora Universal abre as comemorações neste mês, com o relançamento, em CD e LP, de seu cultuado "Transa". Quarentão, o álbum foi remasterizado pelo produtor original, Steve Rooke. Em maio, sai por aqui "Live at Carnegie Hall With David Byrne", já lançado nos EUA. E, em agosto, um tributo com artistas brasileiros e estrangeiros.

Depois de produzir "Recanto", disco de Gal Costa com canções suas, Caetano volta-se para a composição de um novo CD a ser gravado com a banda Cê, que o acompanhou em "Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009).
Folha - Roberto Schwarz faz um misto de valorização literária e severa crítica ideológica de "Verdade Tropical", 15 anos depois da publicação. O que retém em sua leitura?
Caetano Veloso - É envaidecedor que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro. Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica. No entanto, retenho a observação de que o argumento desenvolvido a partir da cena central de "Terra em Transe" seja, no livro, um tanto mal concebido.

Por que Schwarz só publica o ensaio 15 anos depois do seu livro?
Não sei. Talvez ele o tenha lido com grande atraso (não 15 anos de atraso, é claro) e demorado muito para decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu.

Por que o livro renasce agora, com a edição de bolso de um de seus capítulos e a crítica de Schwarz?
Não sei.

Como foi a recepção do livro nos países em que foi publicado?
Foi publicado, em boas traduções, na Itália e na Espanha (e países de língua espanhola). A tradução francesa é horrível. A grega eu não sei ler. De qualquer modo, todas as traduções partem da edição americana (os direitos fora do Brasil e de Portugal são da Knopf), que deformou muito a estrutura do original. Todos os elogios literários que o livro mereceu de Roberto não seriam justificados para quem só lesse as traduções.
Me lembro de que a "New York Times Book Review" deu resenha favorável. Ouço comentários positivos de amigos argentinos, espanhóis e italianos. Também de alguns gregos. Na França parece que, além da tradicional mania francesa de traduzir como quem corrige o original, deram o longo texto a pessoas totalmente desqualificadas intelectualmente: já que se trata de um livro de cantor pop, por que pedir a alguém que saiba ler e escrever para traduzir?

Schwarz vê a relação dos tropicalistas com a esquerda como uma "comédia de desencontros", na qual haveria mais afinidades do que divergências. Seu livro descreve longamente as divergências, e Schwarz agora as reitera. Ainda é possível falar em afinidades?
Claro que há e sempre houve afinidades. Gil e eu, além de Tom Zé e Rogério Duprat, sempre fomos "de esquerda". Nossos amigos foram sempre majoritariamente de esquerda. Na altura do tropicalismo deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos, que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O maior inimigo era esse automatismo.
A cena de "Terra em Transe" é positiva porque expõe a quebra do automatismo ideológico a que artistas e intelectuais se viam presos. Quando o protagonista fala, o tom blasfemo revela tratar-se de um momento liberador. Claro que, uma vez olhando as coisas mais livremente, os males da esquerda apareceriam.

O ensaio atribui a você uma "generalização para a esquerda do nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam" e a visão da "esquerda como obstáculo à inteligência". Desde então, que renovação você vê na esquerda do ponto de vista cultural?
Toda cartilha ideológica, pode ser - e frequentemente é- obstáculo à inteligência. Eu tinha amigos na extrema esquerda que gostavam do que eu fazia e nada opunham ao tropicalismo.
Já contei em minha coluna no "Globo" como quase dei apoio logístico ao grupo de Marighella, através de minha amiga Lurdinha, uma guerrilheira que foi torturada e a quem [o delegado Sérgio Paranhos] Fleury se refere, numa entrevista, como a pessoa mais corajosa que ele conheceu.
Aliás, Hélio Oiticica, Glauber e Zé Celso eram de esquerda, além de Rubens Gerchman, Zé Agrippino e Rogério Duarte. O "desbunde" foi sobretudo um evento interno ao mundo das esquerdas. Hoje em dia, quando Delfim é defensor de Lula e Dilma e se opõe a FH, gosto da revista "Fevereiro", de Ruy Fausto, e detesto blogs como o de Paulo Henrique Amorim.
Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte (não vale dizer que a "grande imprensa já diz"). Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso?
Os esforços intelectuais de [Theodor] Adorno para igualar a vida americana ao Terceiro Reich e à União Soviética só servem para provar repetidas vezes que as liberdades nas democracias liberais são suspeitas: a ostensiva falta de liberdade em países comunistas nunca é combatida, nem eloquentemente, nem cedo.
Quando eu era moço, intelectuais de esquerda dizerem-se anti-stalinistas representava um piso mínimo de elegância: quase nunca passava de uma declaração para se poder continuar sendo comunista. Não havia (como Tony Judt mostrou que não havia na França) um esforço crítico, por parte de intelectuais de esquerda, de se opor aos estados policiais.
É interessante notar que Zizek elogia o imperialismo chinês no Tibete e desculpa as paradas fascistas da Coreia do Norte. Nossos elegantes uspianos nada dizem.

Qual foi a novidade em termos de crítica ao tropicalismo no Brasil e no exterior?
Não leio quase nada sobre tropicalismo. Às vezes esse movimento é citado em publicações sobre música popular, às vezes em artigos acadêmicos (de estudos sobre América Latina ou língua portuguesa). Nada me impressiona muito.

Augusto de Campos e Ferreira Gullar polemizaram em torno de acontecimentos dos anos 1950 e 60, o país discute a Comissão da Verdade, torturadores têm sofrido "esculachos" na porta de casa. A conta dos anos 1960 e 70 não fecha?
Que conta fecha? Mas vamos andando. O ser humano é um desequilibrador. Pessoalmente, sou pela Comissão da Verdade. Há um trecho crucial em "Verdade Tropical", que Schwarz sintomaticamente ignora, em que conto o quanto aprendi sobre a verdade da sociedade brasileira ao ouvir, na cadeia, urros de dor de torturados, os quais não eram nossos companheiros de prisão política. Havia quem dissesse que se tratava de presos políticos vindos de outros quartéis. Mas chegou-se à conclusão de que eram presos comuns, ladrões da Zona Norte, bandidos.
Pois bem, antes da ditadura, durante e depois, esses maus tratos vêm se dando nas delegacias e prisões civis e militares. Se não denunciarmos (e mesmo punirmos) os torturadores que trabalhavam para o Estado, não teremos a saúde social mínima necessária para começar a acabar com isso.

Há um paralelo entre o público dos festivais e os comentaristas de internet e blogueiros de hoje?
Deve haver. Mas não interessa.

O que pensa da Comissão da Verdade e da Lei da Anistia?
Senti que o modelo espanhol da Anistia serviria para o Brasil. Hoje sou totalmente pela Comissão da Verdade e não acho que torturadores devam ser perdoados. Os guerrilheiros foram punidos (inclusive com tortura e morte). É enganoso equiparar os dois tipos de crime.

Você é retratado como um memorialista "comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável". Como responde à acusação de "conservadorismo" político?
Deixei de temer palavras como "conservador" ou "de direita", como se fossem xingamentos que ostracizam, em 1967. Minha teimosia em permanecer no campo da esquerda vem de minha crença na possibilidade de mudar para melhor o jeito de a gente viver sobre a Terra. Não descarto sequer a eventualidade de alguma violência. Mas estou certo de que o que se chama de esquerda também atrapalha muito.
O mito do Brasil e de sua oportunidade de originalidade me põe numa situação em que posso sonhar mais alto, pondo os horrores das revoluções e seus desdobramentos sob crítica. Por essa razão me atraem mais as sugestões de Mangabeira Unger do que as repetições da esquerda uspiana.
Ele abre espaço para a originalidade do Brasil. Para mim isso é fatal: somos originais, seremos originais ou desapareceremos. O capitalismo não é inquestionável: que a gasolina americana tivesse sido enriquecida com chumbo porque isso a fazia mais rentável, e que o empresário que usou essa vantagem tenha mantido em segredo a descoberta de que o chumbo era prejudicial à saúde pública para não ver cair o lucro; e que, depois de essa descoberta ter-se tornado pública, a gasolina americana tenha reduzido gradativamente até zero seu teor de chumbo, mas a brasileira não, por razões de lucro (com todas as implicações de acumulação de capital e de reafirmação de poderes imperialistas), é algo que expõe a que graus de irracionalidade e de desumanidade pode chegar uma organização social que se submeta à exclusiva força da grana. Sou contra.
Mas não quero que os que lutam contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da originalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta e poderia, de qualquer modo, orientar os serviços que alguém queira prestar à Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos movimentos revolucionários da esquerda convencional. Estes têm levado à autocracia e a Estados policiais. Sou contra.
Além disso, quando se diz "capitalismo" o que é mesmo que se está querendo dizer? O capítulo sobre o conceito no livro de Mangabeira é instigante. E Lacan disse uma vez que "o inconsciente é capitalista".

Schwarz critica o "amor aos homens da ditadura" expresso por Gilberto Gil ao tomar ayahuasca e comenta os seus elogios à letra de "Aquele Abraço": "A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito". Como vê essa avaliação severa?
Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz.
Gosto mais do esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio dessa escolha da palavra "esclarecimento" em lugar de "Iluminismo".)
A lição aplicada pelos militares surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade.

Para o ensaísta, há uma discrepância entre as visões de "Verdade Tropical" sobre o Brasil pré-64: ora é descrito como um "ascenso socializante", com sua experiência em Santo Amaro e em Salvador, ora como "um período incubador de intolerância e ameaça à liberdade". Você enxerga essa discrepância?
Eu poderia ter sido um garoto de esquerda, sem desconfianças a respeito sequer do stalinismo. Mas não fui. Me atraiu o livro de Luís Carlos Maciel sobre Beckett, Kafka e Ionesco: a esquerda que eu conhecia era lukacsiana e ninguém falava em Adorno em 1963 em Salvador (embora se falasse muito em Gramsci, o que era pioneiro).
Poderia ter sido um garoto assim e, depois, descoberto que nos países comunistas (não só na URSS e seus satélites, mas na China de Mao, em Cuba, na Coreia do Norte) o Estado desrespeitava oficialmente os mais básicos direitos humanos -e ter me revoltado contra o projeto comunista.
Mas eu era um garoto desconfiado da "ditadura do proletariado", além de ser um sujeito pacato da baixa classe média que sentia natural horror pelo aspecto violento das revoluções.
Descobrir que a experiência do "socialismo real" era de fazer temer os esboços de implantação do comunismo entre nós não foi uma surpresa assustadora. Foi um gradual reconhecimento da complexidade das coisas. Isso aparece em meu livro com todas as idas e vindas por que minha mente passou. Com as nuances e sem evitar as questões que não ficaram resolvidas dentro de mim.
Não é um livro de propaganda ideológica. É um relato em que as reflexões relembradas -ou as sugeridas pela lembrança- acompanham cada passo.

Você se reconhece na descrição que o crítico faz de seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo"?
Gosto de atrito. É a base do sexo. Mas não rejeito o antagonismo.
Sou nitidamente contra o Brasil ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos militares reformados. Sou nitidamente contra Lula ter apoiado a eleição de Ahmadinejad antes de o próprio Irã decidir se as eleições tinham sido fraudadas ou não.

São Paulo, domingo, 22 de abril de 2012

Caetano fugiu do tema, diz Schwarz

FLÁVIO MOURA

"ELE MUDOU DE assunto. Parece piada." Para o crítico Roberto Schwarz, a entrevista de Caetano Veloso publicada na "Ilustríssima" de 15/4 não entra no mérito dos argumentos de seu ensaio sobre "Verdade Tropical" (1997), volume de memórias do compositor. O texto, inédito, faz parte da coletânea recém-lançada "Martinha versus Lucrécia" [Companhia das Letras, 320 págs., R$ 44].

Caetano criticou Schwarz e Marilena Chaui: "Por que nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte?". Schwarz rebate: "O interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro."

Certa vez, num evento, perguntaram a Schwarz quando sairia o texto sobre Caetano. Ele disse: "É demorado, pois é preciso ver muitas coisas de muitos lados diferentes". O ensaio cumpre a promessa.
Schwarz é generoso com a obra do compositor: brilhantismo, inteligência, complexidade dialética, sensibilidade - não faltam conotações positivas à condução do argumento. É raro que uma obra literária recente receba escrutínio tão minucioso. Nesse sentido, não está em discussão apenas a vitalidade de "Verdade Tropical", mas da crítica literária produzida hoje.

O livro também traz dois textos que avançam na interpretação sobre Machado de Assis, tema que domina sua obra. Num deles, cujo argumento se desenrola a partir de uma crônica, "O Punhal de Martinha", o ensaísta reivindica que a universalidade de Machado seja buscada na matéria local brasileira, e não em sua superação, como quer parte da crítica estrangeira.

Leia a íntegra da entrevista, concedida por e-mail, em que Schwarz comenta a resposta de Caetano a seu ensaio e fala de outros textos do livro, como a resposta ao crítico Alfredo Bosi sobre as "Ideias Fora do Lugar", célebre ensaio de 1973.

Folha - Como leu a entrevista de Caetano?
Roberto Schwarz - Ele mudou de assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada.
Ao contrário do que a entrevista faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias. Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.
Como crítico literário, sou sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso, fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder "executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar", "Verdade Tropical", pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha.
É ler para crer. À maneira dos romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as "Memórias Póstumas de Brás Cubas"- "Verdade Tropical" deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o quase romance não deixa de ser um depoimento.

O sr. vê fundamento na cobrança de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?
É claro que a reflexão informada e crítica sobre as experiências do "socialismo real" é indispensável à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.

Por que o ensaio vem à tona 15 anos depois do livro de Caetano?
Logo que o livro saiu, vi que era notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.

Em que medida o texto aprofunda os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio "Cultura e Política: 1964-1969"?
"Cultura e Política" foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da Tropicália. "Verdade Tropical", de Caetano, que reapresenta aqueles tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já "Um Percurso de Nosso Tempo", redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do capitalismo. São três momentos distintos.
A Tropicália do fim dos anos 60 debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de "tradição, família e propriedade". A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente.
Era uma visão crítica, bastante desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em 1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão "nossos". Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante.
No ensaio procurei acompanhar e discutir estes deslocamentos.

Qual a diferença entre fazer crítica dialética hoje e nos anos 1960-70?
A crise atual -de que não estamos tomando muito conhecimento no Brasil- veio precedida pela derrota das tentativas práticas bem como das ideias da esquerda. Assim, não faltam contradições agudas, mas elas parecem não apontar para lugar nenhum, ou só para mais do mesmo.
A crítica dialética naturalmente não pode fingir que sabe uma resposta, mas não tem por que acatar como positiva uma realidade que é evidentemente negativa, nem tem por que renunciar à busca de superações. As contradições estão aí, fermentando.

Não é uma novidade auspiciosa que o Brasil possa não tomar muito conhecimento da crise atual?
Desconhecer uma crise mundial, só porque ela não está nos tocando no momento, é sempre uma ignorância, sobretudo para intelectuais.
No livro há uma conferência feita em 2009 sobre "As Ideias Fora do Lugar" (1973) e uma nota de resposta a um questionamento à tese feita por Alfredo Bosi. A que o sr. atribui essa longevidade?
Suponho que ela se deva à existência real do problema, que surgiu com a Independência, no século 19, e até hoje teima em não desaparecer. A uns, as ideias dos países centrais, que nos servem de modelo, parecem o remédio para todos os males; a outros, uma importação postiça e "fora do lugar", que precisa ser recusada -o que os condena a perder o contato com o pensamento do mundo contemporâneo.
Como entender a questão? Procurei comentá-la e sobretudo esclarecer os mal-entendidos ligados a esse título de ensaio, que teve sorte e ficou conhecido, mas causou bastante confusão.

O título do livro alude ao ensaio sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior, no qual o sr. busca mostrar como a "universalidade" do autor está na finura com que ele lida com a matéria local.
É essa a questão que tentei estudar. O reconhecimento de Machado no estrangeiro é crescente e não precisou da reflexão sobre o Brasil para ocorrer. O escritor entrou para o cânon dos grandes do Ocidente, onde ocupa um lugar diferenciado, sem necessitar da referência a seu país.
Ao passo que no Brasil se formou uma tradição crítica para a qual Machado é extraordinário justamente porque soube inventar uma forma adequada à nossa peculiaridade histórica e social. São explicações opostas para a grandeza de um mesmo escritor.
Como entender essa diferença? Quais as suas implicações? São os problemas que meu ensaio explora, examinando de mais perto e politizando a oposição clássica entre o local e o universal, agora recolocada em termos da ordem mundial contemporânea.

O sr. não parte dos romances, como seria de esperar, mas da crônica machadiana. Vai nisso alguma intenção particular?
De fato, há uma crônica, "O Punhal de Martinha", em que Machado dramatiza a questão do local e do universal com uma graça notável, antecipando cem anos de debate crítico. Procurei analisá-la com cuidado igual ao que merecem os grandes romances e penso que o resultado surpreende.
Aí está, no plano modesto da crônica, uma variante do narrador das obras-primas machadianas, dilacerado entre a irradiação da Europa e os cafundós do Brasil, que aliás podem estar na capital. Trata-se de um mal-estar característico, ou, também, do despeito histórico mundial das elites progressistas de um país periférico. Por inesperado que isso seja, o ar de família com os manifestos modernistas de Oswald e com o clima do tropicalismo salta aos olhos.

Em entrevista de 2011, Antonio Candido afirmou que a crítica literária acadêmica se tornou uma atividade sem riscos, com a nova geração se dedicando apenas a autores consagrados. O sr. concorda?
Se entendi bem, ele estaria valorizando o momento de risco intelectual, de escolha a descoberto, sem o qual a crítica literária se rotiniza ou reduz ao informe publicitário. Mas posso ter entendido mal.

O seu livro é uma coletânea de ensaios circunstanciais, mas há bastante unidade entre eles, que parecem concebidos dentro de um mesmo propósito. É deliberado?
Agradeço a pergunta. É claro que os ensaios têm assunto, origem e forma muito diversa. Mas há a matéria brasileira em comum, com sua estrutura que atravessa os tempos e acaba determinando um conjunto de questões consistentes, retomadas e variadas nos diferentes trabalhos e sugerindo aprofundamentos que valeria a pena perseguir. Para mim mesmo, as correspondências entre a crônica machadiana, a poesia minimalista de Francisco Alvim, a visão pau-brasil e as montagens tropicalistas, por exemplo, vieram como uma surpresa.
Noutro plano, os ensaios fazem ver uma coleção de percursos intelectuais e artísticos de nosso tempo, em contraste muitas vezes agudo, cujo conjunto convida a pensar. Aos pedaços, são contribuições para o autoexame de uma geração.

Um comentário:

  1. Este texto foi muito apropriado para entendermos a função da crítica cultural, recomendo sua leitura a todos os que desejam aprofundar-se neste campo de estudos, um abraço.

    Fábio Bonfim - Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades.

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